Três mortes, feridos, pânico e muita confusão no trânsito da cidade do Rio de Janeiro, no Brasil. Foi este o cenário vivido pelos cidadãos cariocas no último dia 24 de outubro, quando criminosos, residentes no Complexo de Israel, efetuaram disparos de armas de fogo em direção a uma das principais artérias da cidade, a Avenida Brasil, por onde circulam milhares de veículos todos os dias, sendo considerada a segunda maior avenida em extensão do Brasil, contando com mais de 58 quilómetros de extensão. A avenida ficou encerrada por mais de duas horas.
Os tiros aconteceram, segundo fontes, em represália à uma operação da Polícia Militar (PM) do Rio. Os baleados, que estavam em veículos que passavam pela Avenida Brasil, são condutores e passageiros que ficaram sob fogo cruzado na principal via expressa do Rio. Suspeitos também foram feridos e presos. A PM fazia operação para prender ladrões de carros e cargas, mas recuou após os disparos em direção a veículos na Av. Brasil.
Os momentos de tensão pelos quais os cariocas passaram poderiam fazer parte de um cenário de filme de guerra. Os baleados estavam num autocarro, um carro TVDE e num camião. Com receio dos tiros, muitos condutores e passageiros buscaram abrigo por detrás das muretas que dividem as vias da Avenida. Uma grávida precisou sair do autocarro e caminhar por 20 minutos para escapar do congestionamento.
O caso aconteceu com intensidade na altura da Cidade Alta, na Zona Norte, onde está localizado o Complexo de Israel, que inclui cinco comunidades sob o domínio de traficantes.
Segundo a PM, ao chegar às comunidades dominadas pelo tráfico de drogas, os agentes enfrentaram forte resistência dos criminosos. Para impedir a aproximação da PM, criminosos atearam fogo em vários carros e em barricadas.
Cláudia Moraes, porta-voz da Polícia Militar, contou que, “ao iniciar a operação, as tropas policiais depararam-se com valas cavadas pelos criminosos para impedir o avanço dos agentes de segurança”.
“Há relatos de que criminosos, na tentativa de fugir, saíram atirando. Por isso houve a necessidade de interrupção do fluxo da Avenida Brasil e dos ramais da Supervia”, disse esta porta-voz.
Os policiais decidiram, então, interromper a operação e deixaram as comunidades. Tudo aconteceu no início da manhã, pelas 7h locais (11h em Lisboa), momento de intensa deslocação pela cidade com a população a caminho do trabalho.
A circulação de autocarros e de comboios na região foi afetada. Esta ação dos criminosos, considerada um “ato de terrorismo” pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro, Claúdio Castro, causou ainda a interrupção de serviços de saúde e educação na cidade.
Ação das autoridades
No dia seguinte aos incidentes, a Polícia Militar reforçou o policiamento na Avenida Brasil e nas principais vias de acesso. Os batalhões operacionais da Polícia Militar atuam com adicional de viaturas, motopatrulhas e helicópteros para manter a segurança de quem trafega e mora no entorno da principal via expressa do Rio.
Uma determinação que partiu do governador Cláudio Castro, após reunião da cúpula da Segurança Pública ainda no dia 24 e faz parte do pacote de estratégias criadas para coibir a atuação da facção criminosa na Zona Norte.
“O Estado do Rio sofreu um ataque terrorista na manhã de ontem. Os criminosos usaram a população como alvo para criar uma cortina de fumaça, na tentativa de tirar o foco dos agentes. O nosso objetivo é garantir a segurança da população, por isso, reforçamos o policiamento no local e estamos conduzindo novas estratégias para dar uma resposta firme a esses criminosos”, declarou o governador Cláudio Castro.
O policiamento também foi reforçado pelo Batalhão de Policiamento em vias expressas (BPVE) e pelo Comando de Polícia Rodoviária (CPRV). Além da Avenida Brasil, as linhas “Amarela” e “Vermelha”, duas das principais artérias da cidade, também recebem reforço.
“Estamos em uma via que é o principal ponto de transporte de pessoas e de cargas. Estamos intensificando o policiamento para garantir a segurança de quem trafega pela via”, enfatizou a Tenente Coronel Claudia Moraes.
“Responsabilidade do Estado”
Em declarações à nossa reportagem, Fransergio Goulart, diretor executivo da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial do Rio de Janeiro, que faz enfrentamento à violência do Estado e policial, aos grupos armados no Estado do Rio de Janeiro, numa região denominada Baixada Fluminense, “a área mais negra do Estado do Rio de Janeiro”, este “episódio na Avenida Brasil foi mais um dos que acontecem cotidianamente”. Este responsável denuncia o envolvimento do Estado como consequência das mortes em ações como esta.
“A gente acredita que o que aconteceu hoje, com a morte de um trabalhador quando estava indo para o serviço, dentro de um autocarro, fruto de um confronto de uma facção com a polícia, é muito derivado da proximidade do julgamento da DPF-635, uma ação que, junto com outras organizações, tem tentado cobrar do governo do Estado uma política de segurança pública de diminuição da letalidade policial, então o julgamento está se aproximando. E com a proximidade desse julgamento, parece que as operações policiais têm acontecido com mais frequência, muito como resposta do Estado para dizer que a DPF, numa das decisões do ministro Fachin, uma das cautelares, limitou o número de operações policiais, só em casos excepcionais, então o Estado tem utilizado muito isso e quando acontecem esses episódios, que não são por acaso, têm sido provocados pelo Estado e uma avaliação de que isso é fruto da DPF-535, do julgamento que está se aproximando. Estão tentando criminalizar essa ação perpetrada por organizações, movimentos de mães e familiares, entre elas a iniciativa Direito à Justiça Racial”, disse Fransergio Goulart, que sublinhou acreditar que “o Estado sempre tem alianças ou com grupos milicianos, ou com usuários de drogas, a gente via todo um processo com relação às milícias e tudo mais, mas hoje a operação aconteceu numa área chamada Complexo Israel, que a gente identifica como uma outra milícia, que trabalha muito a partir do neopentecostalismo, com perseguição aos terreiros (religião africana), mas que para nós é milícia, e não terceiro comando como algumas universidades e a própria mídia colocam, porque a forma de produzir o controlo dos territórios muito se assemelha às milícias no Estado do Rio de Janeiro”.
Fransergio Goulart referiu também que todo este movimento “pode ser um aceno de que o governo do Estado de novo está fazendo uma aliança com o Comando Vermelho (grupo criminoso), que, durante muito tempo, estava sendo perseguido, e agora começa a retomar alguns territórios, então a aproximação do julgamento da DPF e essa questão desse novo rearranjo de disputas nos territórios e que o Estado é um ator envolvido, por isso, a gente diz que o que aconteceu hoje é de responsabilização do Estado, não tem outra linha”.
“Acreditamos que pensar uma política de desinvestimento das polícias para confronto de guerras entre outros é um caminho, então, toda esta discussão que vem acontecendo no Rio vem provocando a polícia a cada vez mais a produzir operações policiais. O que acontece no Rio de Janeiro hoje, na produção de mortes, é essa parceria que depende do contexto da conjuntura que o Estado vai promovendo com determinada facção, com determinado grupo miliciano, então, isso é fruto diretamente do governo do Estado e da política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro”, reiterou Fransergio Goulart, que alertou para a proximidade do encontro do G20, o que pode estar a suscitar novas ações policiais na cidade.
“As forças de segurança têm responsabilidade total, o Estado tem responsabilidade total sobre o que vem acontecendo. (…) e também tem a ver com uma resposta à DPF 635 que fizemos chegar ao Supremo Tribunal Federal, o maior tribunal do país, para solicitar uma política de segurança pública de redução da letalidade policial, então nada disso é por acaso, e ainda também tem o contexto, mais uma vez, de um mega evento que o Rio de Janeiro vai receber, o encontro G20. Foi assim nas Olimpíadas, foi assim nos Jogos Pan Americanos, foi assim na Jornada Mundial da Juventude, então, toda a vez que tem um megaevento na cidade, são as favelas que viram refém desta política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro”, finalizou Fransergio Goulart. ■