O sub-procurador-geral da República do Brasil, Alcides Martins, espera que o país volte “à normalidade que todos anseiam”. Natural de Vale de Cambra, Portugal, Martins, que é também vice-presidente do Conselho Superior do Ministério Público Federal brasileiro e representante da Procuradoria-Geral da República (PGR) do Brasil no Conselho Nacional de Justiça desse mesmo país, sublinha que, diante do cenário de crise política nacional e com os problemas causados pela pandemia de Covid-19 no país, a PGR deve “cumprir o que estabelece a Constituição e a lei, com empenho, segurança, equilíbrio e sensatez”.
Em entrevista à nossa reportagem, Alcides Martins, que conta com 71 anos de idade e é ainda membro titular da Terceira Câmara de Coordenação e Revisão e do Conselho Institucional, além de oficiar perante o Supremo Tribunal Federal (STF) do Brasil, falou sobre o momento pelo qual passa esse país sul-americano, destacou que o Brasil vive um dos momentos “mais difíceis da sua história”, ressaltou que o STF é acusado de ativismo judicial, opinou sobre a saída de Sérgio Moro do governo de Jair Bolsonaro, mencionou informações sobre a operação Lava-Jato e explicou como estão as relações entre a PGR e a Suprema Corte.
Como enxerga neste momento a situação política no Brasil?
O Brasil vive um dos momentos mais difíceis da sua história pós-Revolução de 1964, porque, a um só tempo, o País passa por uma fase de insegurança política, económica e jurídica que atinge a todos, ante os conflitos existentes entre os Poderes.
Existe um cenário de polarização política no País. Há um movimento contra e pró-presidente da República. Isso ajuda o Brasil?
O cenário de polarização, desta evidenciado da eleição passada, afastou do poder um grupo que, por cerca de 20 anos, dominou a administração, a vida política nacional e atingiu também o Ministério Público e o próprio Poder Judicial, o que à evidência não ajuda em nada o país.
Neste momento de pandemia, o que se espera dos poderes políticos?
No momento que o mundo vive, em maior ou menor grau de pandemia, os poderes do Estado deveriam viver num grau maior de harmonia, mas, lamentavelmente, não é isso que se evidencia nas relações entre o Executivo Federal, Estadual e Municipal, sendo certo que o Legislativo Nacional (Câmara e o Senado) também vive momentos de conflito e o Judiciário se esforça para distribuir Justiça, sendo frequentemente acusado por ações do chamado ativismo judicial.
Em alguns dias, haverá um procedimento pelo Tribunal Regional Eleitoral (TRE) do Brasil que pode levar à abertura de impeachment de Jair Bolsonaro ou à cassação da chapa que elegeu o presidente. Como avalia esse procedimento e quais são as suas expectativas?*
O Tribunal Superior Eleitoral iniciou o julgamento de uma ação que objetivava anular a Eleição Presidencial, ao fundamento de propaganda indevida/abusiva, o que se afigura sem qualquer sentido, quase dois anos após o ato eleitoral.
* Nota da redação: pergunta colocada ao entrevistada antes de ser publicada decisão do TSE pelo arquivamento da ação mencionada.
Especialistas debatem hoje o entrave que está a acontecer na relação entre os três poderes no Brasil: Judiciário, Executivo e Legislativo. Há muitas opiniões públicas, de apoiantes do Presidente, de que o Supremo Tribunal Federal (STF) está politizado e tem interferido nas decisões do poder Executivo, liderado por Jair Bolsonaro. O que pensa sobre o tema?
Efetivamente, o Supremo Tribunal Federal é acusado de ativismo judicial, em relação ao que deixo de me manifestar, porque ofício perante a Corte Suprema e o Conselho Nacional de Justiça.
De forma mais amena está hoje o Congresso a enxergar o governo Bolsonaro, segundo garantem fontes consultadas pela nossa reportagem. Tem essa mesma perceção? Se sim, o que teria motivado essa mudança de comportamento?
Efetivamente, os Poderes estão “condenados” ao diálogo e o Legislativo tem o dever de uma sensibilidade maior, sendo certo que, nos termos da Constituição, são independentes e harmônicos entre si, sem embargo do dever de uma atuação serena, justa e equilibrada, no cumprimento da missão que o povo lhe confiou e do juramento de defesa da Constituição, que todos prometeram cumprir.
Como está a atuação da Procuradoria-Geral da República (PGR), do Ministério Púbico Federal (MPF) e da Advocacia-Geral da União (AGU) em relação à atualidade do Brasil? O poder Judiciário está em crise?
A Procuradoria-Geral da República tem cumprido o que a Constituição Federal estabelece, bem como a Lei Complementar 75, que rege o Ministério Público da União, com uma produção extraordinária, nas diversas instâncias, na Justiça Federal, em primeiro grau, junto aos Tribunais Regionais Federais e aos Tribunais Superiores da República, vale dizer o Superior Tribunal de Justiça, Tribunal Superior Eleitoral e Supremo Tribunal Federal. O mesmo se diga da Advocacia-Geral da União, que atua em todo o território nacional.
A saída de dois ministros da Saúde e do ministro da Justiça do governo Bolsonaro passa para o cenário internacional uma imagem de um País mais enfraquecido, conturbado e com problemas políticos. É verdade?
O momento vivido, por razões conhecidas, é extremamente difícil e isso revela-se nas dificuldades de gestão do executivo em grande parte dos países e, lamentavelmente, o Brasil não fica imune a essa onda, mas não se pode esquecer que o país é o quinto em extensão no mundo, é a oitava economia e tem uma população com cerca de 220 milhões de pessoas.
Como foi vista a saída de Sérgio Moro do governo? Qual é a imagem do ex-ministro no âmbito do Judiciário?
A saída do doutor Sérgio Moro deu-se num momento de alguma divergência, sendo certo que o antigo Magistrado Judicial tem parte da sua vida dedicada ao combate à criminalidade organizada, tendo abandonado a sua carreira para servir como Ministro da Justiça. A sua saída teve vaias e aplausos, mas a sua atenção afigurou-se positiva, a meu juízo.
Tendo em vista a sua experiência no seio do Judiciário brasileiro, alguma vez viu uma movimentação política como a atual no País?
O momento que vivemos é ímpar. O que esperamos é o retorno do País à normalidade que todos anseiam.
Fontes com quem conversamos garantiram que a relação entre o STF e a PGR está politizada, ou seja, que existe uma dinâmica própria das duas entidades em defesa de interesses próprios. Tem acesso a essa informação?
As relações entre a PGR e o Supremo são extremamente respeitosas. Eventuais divergências existem até entre os Ministros do Supremo. Posso testemunhar que a atuação do colega Augusto Aras é respeitosa, independente, sendo ele um dos maiores gestores dos últimos 30 anos.
Sobretudo nas redes sociais, a oposição ao governo Bolsonaro destaca um possível “golpe de estado” a envolver os militares como uma forma de “retorno da ditadura”. Como avalia essas afirmações? Consegue visualizar esse tipo de movimentação no governo atualmente?
Não tenho nem conhecimento, nem essa perceção, por isso, tenho muita dificuldade em responder a esta questão.
Qual deve ser o papel da PGR neste momento?
O papel da PGR hoje e sempre é cumprir o que estabelece a Constituição e a lei, com empenho, segurança, equilíbrio e sensatez.
Há alguns dias, apurei junto à Advocacia-Geral da União e à própria Procuradoria-Geral da República os valores recuperados pela operação Lava-Jato que foram destinados ao governo federal para serem utilizados neste período de pandemia. Trata-se de mais de 1,6 mil milhões de reais. Diante dessa informação, como avalia a pertinência legal dessa iniciativa no contexto da saúde neste momento de pandemia no Brasil e como espera que toda essa “verba extra”, ou parte dela, seja utilizada neste momento?
Quanto à recursos recuperados pela Lava-Jato, tomei conhecimento de que uma parte deles acabou de ser entregue e atender a situações decorrentes da pandemia, o que posso explicitar, em detalhes, oportunamente.
Tomou posse há alguns dias na Terceira Câmara de Coordenação e Revisão, por mais um mandato. Que funções desempenha nesse órgão e à que órgão está ligada essa Câmara?
Fui reeleito, na última sessão do Conselho Superior, para mais um mandato de dois anos, na Terceira Câmara de Coordenação e Revisão, que é a Câmara do Consumidor e Ordem Económica, que analisa recursos, elabora orientação, mantém permanente diálogo com os órgãos de Defesa do Consumidor e as instituições públicas e privadas que tutelam a matéria.
Tem atuado também no STF. Como tem sido essa experiência?
Estou oficiando perante o STF desde setembro passado, inicialmente, no Plenário, como Procurador-Geral, na interinidade que se seguiu ao término do mandato da colega Raquel Dodge e a nomeação do colega Augusto Aras, em virtude de ser o vice-presidente do Conselho Superior do Ministério Público Federal/PGR, facto inédito na história da República, pois, como é sabido, sou português, natural de Vale de Cambra, embora aqui, no Rio de Janeiro, resida desde a adolescência.
Na sua opinião, como o Brasil pode ultrapassar este momento delicado em termos políticos?
Eu não tenho dúvida de que o Brasil é maior do que a crise e a superará a breve espaço de tempo. A crise política, embora não seja a pessoa mais indicada para responder, atinge interesses, o que se deseja é a sua superação, porque o País precisa e merece, bem como o seu povo, alegre, trabalhador e fraterno, cuja generosidade tem se manifestado ao longo do tempo: do Império à República e ao tempo atual. O Judiciário tem cumprido o seu papel, com alguma dificuldade, notadamente em primeiro grau, mas é notável a sua produção, cuja supervisão acompanho no Conselho Nacional de Justiça, que tem atribuição nacional e onde represento, com muita honra, a Procuradoria-Geral da República. Os temas que mais me preocupam são os da liberdade, matéria criminal, o retardo na prestação jurisdicional e a matéria consumerista, com a qual também trabalho, além da administrativa/disciplinar, que envolve alguns comportamentos de jovens magistrados. A população deve observar o cumprimento da lei, viver de forma fraterna, proteger a criança e o adolescente e não esquecer jamais que ninguém deve ignorar os princípios e as normas fundamentais da sociedade em que vivemos.
Que cargos ocupa neste momento? Em que posição está?
Estou no último degrau da carreira, que nós chamamos, incorretamente, Subprocurador-Geral da República. Sou Conselheiro do Conselho Superior e seu atual Vice-Presidente; também ofício no Conselho Nacional de Justiça, onde represento a PGR, que é presidido pelo Ministro-Presidente do Supremo Tribunal Federal, além de Membro Titular da Terceira Câmara de Coordenação e Revisão e do Conselho Institucional, além de oficiar também perante o Supremo Tribunal Federal.
Qual é a sua ligação a Portugal?
Nasci em Vale de Cambra, onde vive parte da minha família. Desde que emigrei para o Rio de Janeiro, no início dos anos 1960, mantive-me ligado à comunidade. Pertenço a várias Casas Regionais. Nos anos 1970, presidi a Casa do Porto, fui integrante de diversos grupos Folclóricos e sempre participei nas Instituições Culturais, Religiosas, de Irmandades fundidas pela nossa gente. Tive a oportunidade de fazer no final dos anos 1970 o Curso de Mestrado em Ciências Jurídico-Criminais, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, após a licenciatura na então Universidade do Estado da Guanabara, atual Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e o Doutoramento na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Participo, anualmente, em eventos em Lisboa, Porto, Braga e Coimbra. Mantenho ligações a Institutos Universitários e à Procuradoria-Geral da República em Portugal. Já representei o Brasil em encontros entre Procuradores e participei em formações em Moçambique, Angola e no julgamento do caso Araguaia, na Corte Interamericana de Direitos Humanos, em São José, na Costa Rica e, também, participei em missões em França e em Portugal, onde se prepara a criação de um órgão de Cooperação entre os nossos países, do qual tenho a honra de participar, em nome da PGR brasileira. ■