É completamente absurdo que o debate político em Portugal se deixe arrastar para a lama em que a extrema-direita gosta de chafurdar por causa da vinda a Portugal do Presidente Lula da Silva, quando o que é verdadeiramente importante é pôr em destaque a nossa história comum com 500 anos, a importância das relações bilaterais nos mais diversos sectores e a definição de uma estratégia para a projeção conjunta nos fóruns internacionais.
Seria um acontecimento de grande simbolismo que Lula da Silva pudesse discursar na Assembleia da República na cerimónia do 25 de abril, para celebrarmos juntos o valor da luta pela liberdade e democracia. Entre os países a que chamamos irmãos pelos laços históricos, culturais e humanos, o Brasil é, sem dúvida, o mais irmão de todos, o único a quem Portugal deu a independência, aquele que projeta a Língua portuguesa para o lugar das línguas mais faladas no mundo. É um país irmão porque uma boa parte dos brasileiros descendem de portugueses e porque entre as comunidades estrangeiras em Portugal, a brasileira é a maior de todas e um fator incontornável do nosso dinamismo económico.
Não pode haver relação mais expressiva do que a existente entre os valores e o significado da revolução de abril e o sobressalto que a democracia brasileira viveu na passagem do poder de Jair Bolsonaro para Lula da Silva. O 25 de abril e a resistência à investida golpista da extrema-direita no Brasil representam valores comuns, a defesa da liberdade e da democracia, a rejeição da perseguição ao pensamento livre, o pluralismo democrático onde cabem as esquerdas, direitas e centros, o combate à pobreza e ao isolamento, a valorização da ciência e da cultura, a luta pelo desenvolvimento sustentável e por uma sociedade inclusiva na qual todos têm lugar e as mesmas oportunidades. A revolução de abril é portuguesa, mas os valores que representa são universais e podem muito bem ser partilhados, num exercício de memória permanente.
A experiência de resistência traumática que o Brasil recentemente sofreu com a tentativa de golpe, que deixou a democracia em perigo com o inacreditável assalto às instituições democráticas na Praça dos Três Poderes, teve o rosto de uma extrema-direita alucinada de mãos levantadas para o céu em oração e até a pedir a intervenção de extraterrestres para derrubarem o presidente legitimamente eleito. Além disso, o então presidente Bolsonaro, um admirador incondicional de Donald Trump, revelou o maior desprezo pelas relações diplomáticas e institucionais com o nosso país, como ficou evidente pela forma ofensiva como tratou o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa.
O aliado e amigo do Chega é Jair Bolsonaro, não Lula da Silva. Mas isso não justifica toda a gritaria em torno da sua vinda a Portugal, pelo respeito que deve haver na relação entre Estados e pelo presidente do maior país da América Latina, que devemos saudar pelo facto de ter regressado à cooperação bilateral e ao multilateralismo, o que é absolutamente estratégico para Portugal, pela sua projeção na América Latina e no mundo.
O Chega é igualmente um partido alucinado e que vende alucinações, tal como a extrema-direita no Brasil ou nos Estados Unidos, mestre na manipulação e na teatralização da indignação, na mentira, que legitima o racismo e a xenofobia, de que quase não se falava antes de André Ventura aparecer, que fomenta o espetáculo da degradação da democracia, que vive de denúncias e acusações gratuitas, que apela nos cartazes de rua à eliminação de políticos legitimamente eleitos, à semelhança do que fazem os regimes fascistas, pondo uma cruz sobre a sua cara.
O Chega está a espezinhar os valores de abril e a instalar uma guerra que atinge o amor-próprio da sociedade portuguesa. Será que isso não se percebe? Não será essa a maior vergonha? ∎
Paulo Pisco
Deputado português eleito pelo círculo da Europa