Brasil: José Manuel Diogo mediou encontro entre Jeferson Tenório e Lívia Sant’Anna Vaz durante Flitabira

Exílio e escravidão estiveram em debate

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Foto: Kevem Willian
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O exílio foi tema da mesa “Nova canção do exílio”, nesta noite de sábado (04/11) no Festival Literário Internacional de Itabira – Flitabira. A conversa reuniu os autores Jeferson Tenório, vencedor do Prêmio Jabuti de Romance Literário por “O avesso da pele”, e Lívia Sant’Anna Vaz, Promotora de Justiça do Ministério Público da Bahia e uma das 100 pessoas de descendência africana mais influentes do mundo, com mediação do convidado José Manuel Diogo, presidente da Associação Portugal Brasil 200 anos. No poema de Carlos Drummond de Andrade que dá nome à mesa, o escritor faz uma releitura do clássico poema “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias.

Lívia abriu sua fala trazendo outro poeta em diálogo com Carlos Drummond de Andrade. A escritora leu os versos de “Eclipse”, de Carlos de Assumpção. Nos versos do poeta, o exílio também é o tema:

“Olho no espelho

E não me vejo

Não sou eu

Quem lá está

 

Senhores

Onde estão os meus tambores

Onde estão meus orixás

Onde Olorum

Onde o meu modo de viver

Onde as minhas asas negras e belas

Com que costumava voar”

Após a leitura, Lívia comentou: “Esse poema me comove muito pois ele fala de um exílio sem retorno. Um exílio imposto pela escravidão”. Livia resgatou a história das pessoas negras escravizadas que vieram ao Brasil, forçadas a exílio de seus modos de vida, da própria língua e “de suas asas negras e belas com que costumavam voar em liberdade”.

Jeferson Tenório falou sobre os muitos formatos do exílio: “Muitas vezes, ele pode ser um exílio íntimo”. Na sequência, o escritor retoma a história de Gonçalves Dias e seu poema “Canção do exílio”: “No poema há uma exaltação da natureza. A natureza é omito fundador do Brasil. Dentro desse mito, há essa ideia de que o país seria um paraiso”.

Foto: Kevem Willian

Para Jeferson, o exílio é um lugar de solidão e também de reflexão. Pensando ainda na questão do exílio, Tenório fez uma longa e muito interessante análise do tema em diálogo com as histórias das religiões de matriz africana, sobretudo os mitos acerca de Orixás e Exus. “A lógica maniqueísta é uma lógica colonizadora, ela não cabe nas religiões de matriz africana”. Em outro momento, o escritor falou sobre a doença denominada “banzo”, um estado de depressão psicológica que tomava conta dos africanos escravizados assim que desembarcavam no Brasil: “É essa angústia infinita. Essa saudade que não passa. Os terrenos de umbanda e candomblé são metáforas para essa terra perdida”.

José Manuel Diogo questionou sobre os novos tempos: “Como explicar esse exílio forçado para a sociedade branca?”. Para Livia, o homem branco pode ser um homem antirracista: “Não subestimem as narrativas das pessoas negras”. Para a autora, é errônea a ideia de que o branco não tem identidade racial. “Se eles ocupam todos os espaços de poder, talvez eles sejam o grupo mais identitário de todos”.

Em outra provocação, o mediador perguntou para Jeferson Tenório. “Como a literatura pode agir num possível processo de reparação histórica?” Para Tenório, não existe descolonização tranquila. “É interessante, pois isso causa uma ansiedade muito grande na lógica do ocidente. Quando temos pessoas negras que se tornam agentes epistêmicos de si, quando começam a produzir conhecimento e colocar em prática suas teorias, isso causa grande ansiedade na branquitude”. Para ele, é importante produzir esse saber, fazer com que esse saber ganhe público: “É um processo de regeneração identitária, no qual a literatura acaba contribuindo”.

Livia falou sobre o exílio das crianças negras: “As crianças negras precisam lidar com o racismo ainda na primeira infância. (…) Isso causa desencaixes muito graves na construção da identidade delas”. A autora destaca a importância da literatura infantil na construção de novos olhares para as crianças negras. “A educação antirracista não é só sobre crianças negras, mas também sobre crianças brancas”.

Foto: Kevem Willian

Numa fala contundente, Jeferson Tenório comentou: “Quanto mais as pessoas negras ganham reconhecimento, mais nos pedem para que a gente encontre soluções. Que a gente encontre uma solução para o racismo. Eu acho que o problema não é nosso, é de quem criou o racismo”. O autor destaca a importância de uma união de forças nesse sentido. “Mesmo me considerando um ‘afropessimista’, eu acho que faço literatura porque eu acredito em alguma coisa. Se eu não acreditasse numa mudança, eu não escreveria meus personagens.”

Em um momento emocionante, pensando na temática do Flitabira, “Arte, literatura e correspondências”, Lívia Sant’Anna leu uma carta de Esperança Garcia, considerada a primeira advogada do Brasil, datada de 1770:  “Eu sou uma escrava de Vossa Senhoria da administração do Capitão Antônio Vieira do Couto, casada. Desde que o capitão lá foi administrar que me tirou da fazenda algodões, onde vivia com o meu marido, para ser cozinheira da sua casa, ainda nela passo muito mal. (…) Peço a Vossa Senhoria pelo amor de Deus ponha aos olhos em mim ordinando digo mandar ao procurador que mande para a fazenda aonde me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha.” Após a leitura da carta, Lívia fez uma breve análise: “Naquela época, era impensável que uma mulher negra pudesse fazer uso do ato da fala a partir da escrita”.

Muita emoção aguardava o público no final da mesa. Jeferson Tenório concluiu sua fala com um pedido: “Nos leiam”. Ao fim, Lívia Sant’Anna Vaz cantou a música “Cordeiro de Nanã”, convocando todo o auditório a cantar junto.

“Fui chamado de cordeiro mas não sou cordeiro não

Preferi ficar calado que falar e levar não

O meu silêncio é uma singela oração

Minha santa de fé

 

Sou de Nanã, euá, euá, euá, ê” ■

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